domingo, 21 de abril de 2024

Palavras e expressões

            Recordo amiúde a história que Laborinho Lúcio nos contou, aquando da visita do Curso de Conservador de Museus ao Centro de Estudos Judiciários, que na altura dirigia, sobre a necessidade de os juízes se inteirarem dos significados locasis das palavras e expressões.
            O juiz recém-chegado a Vila Real de Trás-os-Montes manifestou a sua perplexidade por o queixoso ter posto processo por difamação contra um vizinho, por este lhe ter chamado «minhoto»:
            – Eu não percebo! O nosso escrivão também é minhoto e não se rala nada com isso!
            O Minho é, como se sabe, uma região onde abunda o gado bovino…
            – Está bem, eu ponho no jacó!
            Também esta resposta pode causar surpresa ao recém-chegado a Coimbra. Jacó é o nome popular dado ao caixote do lixo e ao cesto dos papéis, desde que, em Outubro de 1929, o presidente da Câmara, João dos Santos Jacob, propôs a criação dos recipientes para o lixo, que o povo logo começou a chamar «jacós».
Mantendo-nos em Coimbra, igualmente surpreenderá ouvir «depois tens uma cortada à esquerda e vais por aí». Cortada é travessa, atalho, na nomenclatura da Lusa Atenas; quiçá, uma boa alternativa ao estrangeirismo «link» dos computadores…
– Amanhã, dás-me boleia?
Poucos saberão, porventura, a origem da expressão. Boleia era, nas antigas carruagens, o pequeno assento ao lado do condutor, amiúde usado para levar quem não tinha outro transporte e, por isso, ‘apanhava uma boleia». Já no Brasil, o termo é carona. Poderá ter origem parecida à da boleia em Portugal, porque aí se chama de carona uma peça do arreio que se coloca por baixo do lombo do animal. Creio, pois, sem lógica a hipótese de a palavra vir do castelhano e, este, do latim «caro», que significa carne, como os dicionaristas sustentam.
– Levas-me aí um sopapo, que até vais a nove!

Foi numa visita de estudo do Curso de Museologia ao Museu do Eléctrico, no Porto, que percebi o verdadeiro significado da palavra: no volante do guarda-freio, 9 é a velocidade máxima que o eléctrico dá!

                                                                       José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 863, 15/4/2024, p. 10.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Os nossos termos vernáculos

             Não baixamos os braços, nós, os defensores da língua portuguesa. Diariamente pugnamos contra a avassaladora invasão de termos estrangeiros, aceites amiúde sob o pretexto de que melhor exprimem o que se pretende dizer.
            Sim, é difícil resistir, por exemplo, ao uso da palavra email, em vez de ‘correio electrónico’. E até já sabemos: pronuncia-se ‘imeil’ – e toda a gente compreende. Aceita-se, aqui, a derrota. Contudo, novas e aguerridas frentes de batalha se abrem.
            Assim, João Lourenço Roque, refugiado no lugar de Calvos da remota freguesia beirã de Sarzedas, não tem hesitado dar a conhecer nas suas crónicas (publicadas depois em livro sob o título de «Digressões Interiores») termos e expressões da «linguagem à moda antiga»: estraboucher = rebolar com dores e espasmos, «prendi o burro a uma estaca, mas ele comido com moscardos tanto estrafouchou que partiu o cabresto, largou os atafais e abalou desinfriado ós fanicos lombas acima…».

            A propósito da fotografia dos cestos à venda na feira, escreve Alberto Correia («Ruralidades» 2023, p. 35): «E o cesteiro que logo de manhã se senta no seu banco armado com o ferro de lavrar no preparo das corras, as delgadas tiras de madeira de castanho, de mimosa, de sanguinho ou os vimes do ribeiro»… Quem há aí que use no quotidiano essas palavras?
            Maria Mícaela Soares, etnóloga que fez a sua vida na Assembleia Distrital de Lisboa e percorreu, por isso, todo o distrito, mormente a região saloia, legou-nos o livro «Glossário de Linguagem Popular – Apontamentos», volume de quase 400 páginas, agora postumamente editado pela Câmara Municipal de Cascais. Esse longo e mui atento contacto com o povo, por um lado, e, por outro, a miúda leitura dos nossos clássicos, sobretudo aqueles que à linguagem dedicaram largas páginas, deu-lhe azo a compendiar centenas de expressões que, essas sim, fazem parte do nosso quotidiano e são, por isso, inacessíveis aos estrangeiros e, cada vez menos, às gentes da cidade embalsamadas em vocábulos da estranja: «esticar o pernil», «essa nem lembrava ao diabo», «daí, menino, eu lavo as minhas mãos», «pareces, homem, uma tábua de engomar», «ah! esses, cuidado com eles, fazem mão baixa de tudo, chiça, penico, chapéu de coco!»…
            Dar baixa devíamos nós das palavras inglesas que grassam como peste malina e pôr em alta, ao invés, os termos que nosso falar tanto enobrece.
 
                                                                José d'Encarnação

            Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 862, 1/4/2024, p. 10.

quarta-feira, 20 de março de 2024

Molhem as cordas!

            Reza a história que, a dado momento da operação de se erguer, no meio da Praça de S. Pedro, o obelisco vindo do Egipto, no ano 37 d. C., o pânico se apossou dos operários, porque as cordas começaram a ranger e se corria sério risco de partirem e, caindo, o obelisco partir-se, além de poder ferir gravemente alguém. O que é que se faz, que não se faz…
            De repente, há um grito na multidão silenciosa:
            Aqua alle funni! Molhem as cordas!
            Assim se fez, numa pressa. O obelisco, de 350 toneladas, mantém-se, pois, na Praça de S. Pedro desde esse dia, quase fatídico, de 10 de Setembro de 1589. E o capitão Bresca, que ousara quebrar o silêncio a todos imposto durante a operação sob pena de morte, acabou por ser agraciado pelo Papa Sisto V e o seu grito assume-se, hoje, como símbolo da luta contra a prepotência.
           Ao investigar a prática da caça nos começos do século XX em Cascais, apercebi-me, nas narrativas, da maior preocupação dos caçadores: a água para os cães! Deveriam organizar o seu périplo de modo a passarem, no tempo oportuno, por um chafariz ou um charco onde os animais pudessem dessedentar-se. Compreendo isso, hoje, claramente, porque o meu labrador, antes e depois dos passeios diários, nunca se esquece de beber.
        A importância da água não carece de argumentação, até porque há uma espécie de norma vulgarmente aceite (quiçá cientificamente documentada) de que devemos beber litro e meio de água por dia. Meu urologista torceu o nariz, há dias, quando, cheio de vergonha, eu lhe confessei o pecado de negligenciar essa norma; percebi, pelo seu ar, que merecia penitência.
            A questão põe-se também – e cada vez mais – em relação à qualidade da água, mormente da água que nos é fornecida pela «companhia», palavra que serve para identificar o organismo oficial encarregado desse fornecimento. Somos, por vezes, surpreendidos por depósitos estranhos ou por um sabor «a cloro» e aumenta a tentação de consumirmos água engarrafada (preconiza-se que não seja sempre da mesma origem). Lembro-me que, em pequeno, ouvia dizer que meu padrinho Garcia, de Olhão, era o distribuidor-mor da água de Monchique, uma das que, na verdade, quiçá pelo seu alto teor alcalino (9,5 de ph) ou em homenagem ao meu padrinho, eu também tenho em casa habitualmente.
Direi, porém, que fiquei mui agradavelmente surpreendido quando, em Maio do ano passado, me foi apresentada à mesa, na cantina da Universidade do Algarve, uma garrafa que dizia «Água da Torneira». Congratulei-me. Até enviei mensagem ao nosso ex-presidente António Eusébio, o que ora preside às Águas do Algarve, S. A., a congratular-me com a iniciativa.
      Nesta aflição em que estamos aqui no Sul, na iminência de racionamento do precioso líquido, duas medidas se preconizam, como toda a gente sabe: poupar e não desperdiçar. Poupança a nível individual e familiar; poupança, de modo especial, a nível das estruturas, para evitar fugas na canalização. A reabilitação de poços insere-se igualmente – deveria inserir-se – nessa preocupação. S. Brás de Alportel, pela sua localização em vale tem, como se sabe, potencialidades a nível freático. Lembro-me sempre das bicas dos Vilarinhos ou do poço do Corotelo, que era público e hoje se encontra, ao que parece, inoperacional – e importará saber porquê). Tudo o que contribua para diminuir os lençóis subterrâneos ou os contaminar deve ser prioritário impedir.

                                               José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 328, 20-03-2024, p. 13.

Ruralidades

            Aceitou a Freguesia de Viseu o desafio de publicar em livro de prestígio, excelente apresentação gráfica, capa cartonada, o álbum intitulado Ruralidades, da autoria do Dr. Alberto Correia. Fotografias do Arquivo Foto Germano, de Viseu; design de Sónia Ferreira. 2023, 500 exemplares, 64 páginas.
            Louve-se a sensibilidade do seu presidente, Diamantino Amaral dos Santos, que salienta, na Nota Introdutória, este «discurso simples e delicioso, que matiza e faz persistir as memórias de gentes pitorescas»; louve-se a disponibilização de  verba para a edição; louve-se a forma original como o Autor legendou, na página da direita, a foto inserida na da esquerda, fazendo-a falar, levando-nos, em clave poética, a melhor a contemplar e a entrar, de mansinho, na existência antiga do que ali se apresenta como que apanhado em fragrante…
            Optou-se – e bem! – por magníficas fotos a preto e branco, que mui adequadamente realçam o instantâneo captado. Nada de poses, de artifícios! É mesmo o instantâneo natural, susceptível de transmitir o viver quotidiano. Acontece, porém, que o Dr. Alberto Correia não se limita à mera evocação dos seus tempos de menino, mas evoca sobretudo – e isso é que importa realçar – o halo poético que deles inevitavelmente dimana, com o objectivo de preservar a memória, fautor de manutenção de identidade!
 

            Não resisto a exemplificar usando a imagem (mui difícil, muito difícil mesmo a minha opção, confesso!) escolhida para a capa: a das lavadeiras na Ponte da Azenha, no rio Pavia. Aí cumpriam elas «a arregimentada tarefa do lavar da roupa de uma abonada burguesia (…)» e «de uma residual e caprichosa fidalguia». A burguesia a viver em «solenes mansões»; os fidalgos, nos «últimos solares que resistiam à ruína».
            Tarefa acabada, roupa corada, enxaguada e seca «na suspensão festiva do cordame», dobrados «os lençóis de linho, as roupas de uma não desvelada intimidade, toalhas de mesa e  peças de enxoval», o poeta anota:
            «Um filho ao colo, um filho pela mão, os passos marcados no subir da calçada e o cheiro a sol que as lavadeiras deixavam à porta de um lar. E a roupa delas que ficar por lavar!...».
             Ouvimos-lhes os passos, sentimos-lhes o cansaço, deixamo-nos ficar. Maravilha!

                                                                José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 861, 15/03/2024, p. 10.

 

terça-feira, 5 de março de 2024

Miosótis

             Uma luz diferente quis envolver o raminho. Chamou por mim. Cativou-me – a recordar a frase d’O Principezinho:

«Quando se ama uma flor plantada numa estrela, é um encanto, à noite, olhar para o céu: todas as estrelas estão floridas».

Assim o miosótis.

Florinhas de corolas hexapétalas de um azul cerúleo, estames amarelos ao centro envolvidos de branco; folhas lanceoladas, só de nervura central de um verde mais carregado. Beleza! Vistas assim, de parede cinza ao fundo: maravilha!
            Dir-se-ia artificial arranjo de ikebana, mas não é: rendo-me ao Criador!
            Não resisti. Fotografei a serenidade bela do meu miosótis. E mais pasmado fiquei quando vim a saber do seu nome popular: não-me-esqueças!
            Irresistível a vontade de o começar a partilhar. De Portugal voou, por exemplo, para Roma. Recebeu-o Eugenia Serafini com particular carinho e, num repente, quis dedicar este haiga:

                        Piccoli fiori

  Sorridono alle

                S t e l l e

    Volo di Colibrì

As flores bem pequeninas
Sorriem para as estrelas
Qual voo de colibri

Ikebana, arranjo floral japonês; haiga, desenho simples, com traços singelos, a complementar o haikai, poema conciso. A delicada simplicidade japonesa, imagem e poesia, a sublimar a admiração, a concretizar a comunhão entre a Arte divina captada por uma objectiva e catapultada – pela Poesia – para um horizonte superior.

Imaginamos o sereno esvoaçar do colibri a tentar sugar mui saboroso néctar – e quedamo-nos, alfim, em mui contemplativo silêncio, alheados, completamente alheados do vertiginoso corrupio em que se nos escoam os dias…

José d’Encarnação

Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 860, 01/03/2024, p. 10.

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Atirar pedras

            Múltiplas serão para cada um de nós, as imagens que, de imediato, ocorrem quando deparamos com a expressão «atirar pedras».
            Se já somos entraditos na idade, voa o pensamento para a infância, para os momentos em que, na rua (ainda havia rua e espaços para isso e companheiros para isso), nos desafiávamos mutuamente a ver quem tinha mais pontaria para deitar uma lata abaixo ou para acertar numa ‘caneca do pau-de-fio’, que era como nós chamámos aos suportes de porcelana das linhas telefónicas. Ou, na berma do charco que se formara com as chuvadas, quem conseguia fazer que a pedra saltasse mais vezes à tona da água antes de mergulhar. Esse, aliás, era um dos divertimentos maiores na praia: quem consegue mais saltos da pedra?
            Para algum de nós, pedrada pode, instintivamente, fazê-lo levar a mão à testa, onde ainda resiste, e resistirá, a cicatriz da pedra que, jogada para entrar no pontão da ribeira, saltou e provocou jorros de sangue, numa aflição.
            Quando começámos a ter lições de Religião, retivemos, porventura, aquela frase de Cristo, quando Lhe apresentaram Maria Madalena, com a intenção de obter d’Ele autorização para o apedrejamento previsto na Lei para quem se comportasse mal. E a resposta foi: «Quem dentre vós não tiver pecado que atire a primeira pedra» (João, 8, 7). E, ao contrário do que hoje ainda acontece, a morte por apedrejamento não ocorreu e Maria Madalena, rezam as Escrituras, salvou-se e é hoje venerada qual símbolo da regeneração.
            E há, pois, sentenças em que a expressão ‘atirar pedras’ vai na direcção da mensagem evangélica: «Quem tem telhados de vidro não atire pedras ao do vizinho», por exemplo.
            E se alguns de nós podem ter sempre no bolso um pedacinho de ametista ou de safira, «porque lhe dá sorte», o protege dos maus olhados, outros – para se consolarem das adversidades, das inimizades, dos ciúmes, das invejas… – poderão ir, amiúde, ao baú de pensamento buscar, para refrigério, a máxima patente no sagaz provérbio árabe:
«Não se atiram pedras às árvores que não têm fruto!».                    

                                    José d’Encarnação

 Publicado em Renascimento [Mangualde], nº 859, 15/02/2024, p. 10.
 Ilustração de José Luís Madeira pensada expressamente para esta crónica.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

O filho duma magana!

            Ainda me lembro. Quando alguém pregava uma partida, lá vinha a frase num riso:
            – Ah! Filho duma magana, o raio do homem!
            Na lojeca do centro de apoio ao turista em Castro Verde, não resisti e comprei o doce Magana, com a promessa da menina de que era mesmo bom. E é: tem cacau, pedaços de noz e, a barrar uma tosta, é de comer e chorar por mais!
            Mas tanto o doce como a lembrança dos tempos idos me levaram a procurar o significado da palavra.
Explica o meu velhinho dicionário do Augusto Moreno (tenho a 5ª edição, de 1948!...), que ‘magana’ é palavra usada para sugerir «mulher desenvolta e lasciva».
Vai mais longe o do Cândido de Figueiredo (edição de 1978). Segundo ele, trata-se de um provincianismo alentejano (é também algarvio, acrescento eu) e significa «mulher dissoluta». Deriva, explica ele, da palavra «magano», que designava o negociante de escravos, o negociante de animais. E que inda se usa na concepção de «mariola, indivíduo de baixa origem», aplicando-se, em sentido figurado, a um «indivíduo travesso, ardiloso, jovial, desenvolto, engraçado». Quanto à etimologia, pergunta se não terá vindo do vocábulo latino «mango». De facto, essa palavra tem a forma «mangonem», donde veio manganão, mangar, palavras bem aproximadas do sentido brincalhão da expressão «Ah! filho duma magana! Espera aí que já apanhas com o chinelo, sempre a gozar com a gente!»
Ora, a palavra latina «manga» tem o sentido original de «negociante que enfeita as mercadorias para as vender por maior preço», negociante de escravos e, também, polidor de pedras preciosas. Tudo na mesma onda: a da trapacice!
O Dicionário da Língua Portuguesa da Academia das Ciências de Lisboa, não deixando de assinalar, como desusado, ‘negreiro’, afina pelo mesmo diapasão: 1) jovial, desenvolta, namoradeira; 2) que é lasciva, dissoluta. E aponta como origem o castelhano «magaña».
Decidi ir mais longe e fui ao grego: «magganeía» é, nessa língua, astúcia, sortilégio, encanto, magia!
E não é mesmo um encanto a gente embrenhar-se por estas florestas da Língua?

                                    José d’Encarnação

Publicado em Notícias de S. Braz [S. Brás de Alportel], nº 327, 20-02-2024, p. 13.